Movida pelo sucesso da mini-série Senna também em Portugal, a revista SÁBADO produziu, há pouco, algumas matérias sobre o ídolo. Numa delas, a autora Raquel Lito inseriu o meu livro e me cita levemente, demonstrando ter entendido o aspecto diferencial dessa minha produção, quando comparada aos tantos outros títulos publicados no mundo inteiro sobre o segundo esportista mais famoso globalmente de toda a história do Brasil.
Embora sua pauta abordasse a história da relação de Senna com Portugal, Raquel deu destaque ao que comento, no livro, sobre o treinamento mental do campeão e a representação do arquétipo do herói que Senna foi – e é – no imaginário brasileiro e internacional.
O livro teve uma nova edição, publicada – em português – nos Estados Unidos, na Buobooks, que também tem uma filial em Portugal . No Brasil, as edições anteriores só se encontram em sebos. Essa foi especialmente editada, tendo como mote um dos eventos do Lewis Hamilton correndo F1 no Brasil e homenageando aquele que é também seu maior ídolo e referência na sua igualmente brilhante carreira.
A SÁBADO permite a leitura gratuita de duas ou três matérias, creio, se você se propõe a se cadastrar na publicação.
Aqui o link para a matéria, que tem sido uma das mais lidas da revista:
https://www.sabado.pt/…/em-portugal-ayrton-senna-sentia…
E aqui o link e info sobre o livro, no site da Buobooks:
https://www.buobooks.com/…/ayrton-senna-heroi-em-dois…
E um presente neste meu primeiro post público de 2025 no meu site, desejando a todos um ótimo anode crescimento qualitativo pessoal, tocados, quem sabe, pelas qualidades que Ayrton Senna tão bem encarnou como referência inspiradora a muitos de nós na jornada de vida.
EXCERTO 1
1994
A morte na sala de visitas
O trágico final da vida de Ayrton Senna provocou a maior comoção pública da história recente brasileira, embalada pelo poder de impacto da televisão. Durante todo o episódio, a instantaneidade das transmissões, a força dramática das imagens e a cobertura intensiva das emissoras ajudaram a formar um intricado oceano coletivo de emoções que tocava os olhos, penetrava a pele, invadia ouvidos, disparava os nervos. Puxava sentimentos adormecidos no mais fundo dos corações insuspeitos, sacudindo a alma numa gigantesca sequência crescente de catarse em ondas. Deste clima poucos escapavam, particularmente em São Paulo, a população imersa numa enorme tristeza que, apesar de tudo, teve aspectos positivos, de um astral elevado.
“Essa coisa muito forte da morte de um ídolo me pegou pela mídia”, diz Carlos José Morais Dias, bancário. “Passei a ver tudo de cabo a rabo, a ponto de levantar às seis horas da manhã para assistir à chegada do corpo no aeroporto. Eu chorava na frente da televisão. Numa boa, porque eu achava que tinha que entrar no grande ritual que a televisão brasileira estava fazendo.”
O ritual eletrônico, unindo em tempo psicológico instantâneo o fato distante e o telespectador, foi para Carlos, “uma coisa fenomenal”. Sua avaliação não se refere a um possível lado espetaculoso, mas sim a um papel nobre que, entende, a televisão desempenhou:
— Sou totalmente contra quem acha que a televisão exagerou. Acho que tinha que mostrar mais ainda, porque o povo tinha que rever tudo aquilo, inclusive o acidente, uma série de vezes. Primeiro, para o povo entrar num processo de quase purificação, dentro das próprias casas. Segundo, porque pela primeira vez se viu um ritual fúnebre completamente diferente. Para começar, o funeral não era católico, não se viu nenhum padre ou bispo ir lá prestar solidariedade à família. A mãe tinha uma postura, diante da morte do filho, bem diferente daquilo tradicional que a gente tem, que parece tragédia grega, a mãe se descabelando sobre o caixão. Ela estava impassível. Vem a irmã, no cemitério, faz um discurso totalmente diferente, quase político.
Tudo isso ajudou o povo, na visão de Carlos, a descobrir um outro modo de encarar a morte, porque este é um assunto “não muito bem trabalhado pelo brasileiro”. É importante, entende, que as pessoas vivenciem os rituais fúnebres de maneira consciente, despedindo-se corretamente do morto. Até mesmo apaziguando-se com ele.
Se o tema morte é ainda um tabu que precisa ser enfrentado com um grau de consciência que muitos não atingiram, a manifestação espontânea do povo demonstrou que o brasileiro reúne um potencial genuíno raro para a elevação dessa consciência. As tocantes manifestações das torcidas nos dois maiores estádios de futebol do país foram explosões públicas de afeto coletivo único, singular. O coro unido de torcidas rivais — cantando o refrão “olê, olê, olê, olá, Senná, Senná” — no Maracanã lotado para o clássico Vasco X Flamengo e no Morumbi repleto para São Paulo X Palmeiras, explodiu, incandescente de calor humano, do lado mais bonito da alma brasileira. Saltou daquele recanto protegido onde ainda imperam uma bondade, uma pureza e uma riqueza humana que a atribulada vida massacrante de nossos tempos felizmente não conseguiu destruir.
País cheio de contradições, desigualdades e desastres institucionais que todos nós conhecemos, o Brasil demonstrou, no episódio Senna, o quanto de grandeza pulsa no coração de um povo que mal descobriu sua força, ainda menospreza seu valor e desconfia da sua capacidade para construir a nação sublime que ainda poderemos ser. Senna partiu provocando um choque emocional coletivo sem precedentes, atuando como um espelho que nos remeteu a nós próprios, como indivíduos e povo, com uma intensidade talvez jamais ocorrida em nossa história.
EXCERTO 2
2005
A chama que não se apaga
No miolo do circuito encontra-se um parque público, o Parco Acque Minerale. Trilhas percorrem o parque e para chegar a ele, vindo pela Dante Alighieri, o visitante passa sob a pista, que naquele trecho tem um pequeno pontilhão.
Chegando do centro da cidade, primeiro você atravessa o Rio Santerno, um fio de água estreito, neste ponto. Faço isto, cruzo sob a pista, mais adiante. Pergunto a um sujeito de meia-idade, que está por ali fazendo sua caminhada, como chegar à estátua de Ayrton Senna. Em abril de 2004, a cidade inaugurou um monumento de bronze em homenagem a Ayrton, encomendado ao artista local Stefano Pierotti. A estátua foi erigida dentro do parque, num setor vizinho à fatídica Curva Tamburello.
Caminho na direção apontada, por entre árvores, ouvindo a algazarra de um bando de crianças e algumas professoras, um pouco à distância, após o campo de futebol, na área de playground. Bem mais próximos a mim, num banco da trilha, um garoto e uma menina adolescentes manuseiam um livro, escrevem num caderno aberto, trocam frases entre risadas animadas.
E então o encontro. Na parte superior, o monumento mostra um Ayrton Senna sentado, pensativo, como se olhasse para um ponto vazio não identificável. Na parte inferior, numa das laterais, o piloto é reproduzido de pé, de costas, o capacete pendurado por uma das mãos, como se caminhasse rumo ao infinito.
Em torno, no chão, a surpresa. Um buquê de flores amarelas aqui, ressequidas um pouco pela falta de água, outro buquê ali, tombado por um vento mais forte. E exatamente ao pé da estátua, a carta. Escrita em computador, as folhas impressas grampeadas a um invólucro de plástico, que a protege das intempéries. A água da chuva e o tempo já fizeram estragos. Frases incompletas, letras esmaecidas. A carta está em italiano. Muito da sua essência se pode captar, se o leitor tem paciência e vai costurando com o olhar os trechos que formam um sentido:
Caro Ayrton,
Tu és de luz radiante, capaz de iluminar qualquer ambiente… Sentimos tanto a tua falta, mas tenho a luz do teu sorriso para iluminar a minha vida e dar-me felicidade…nos teus olhos se encontra toda a verdade do mundo … não posso, não quero esquecer-te, um homem tão especial como tu, Ayrton. Que seja eternamente feliz.
Isabella.
A uns cinco metros da estátua está o alambrado que separa a pista do parque, na altura da Tamburello. Também aqui há artefatos de emoção, frases explícitas ou símbolos discretos que gritam em silêncio o sentido da vida de um ídolo. Um buquê pendurado e preso por adesivo, a palavra Paz afixada a um plástico protetor. Uma pequena bandeira brasileira que já perdeu as cores, agora quase toda branca. E uma outra carta, também em italiano, destacando um episódio muito particular:
Ayrton em 93 (se me recordo bem) … um rapaz de Bolonha, seu fã, caiu da motocicleta…na pressa de ir vê-lo… entrou em coma profundo…e você foi visitá-lo em segredo…e o exortava a não desistir, a lutar pela vida e lhe falava com doçura infinita…penso que Ayrton era e é extraordinário e insuperável como piloto e como ser humano. AYRTON SEMPRE.
Patty.
Fico ali uns minutos, contemplativo, buscando apreender a manifestação das pessoas. Não esperava encontrar as flores e as cartas, nem na estátua nem no alambrado da Tamburello. Tanto tempo depois… não imaginava que os fãs continuassem a manifestar apreço. Surpreende-me também que isto me comove. Faço uma oração pela alma de Ayrton, outra pela família Senna e uma terceira em especial por Viviane, a irmã, que está liderando o trabalho social do Instituto Ayrton Senna.
Na pista, três carros da Porsche Driving School repetem várias vezes uma mesma manobra. Aceleram desde o ponto de largada, freiam e fazem a Tamburello — a primeira das curvas —, avançam um pouco mais e depois retornam em marcha lenta no sentido inverso. O instrutor e um motorista conversam em cada veículo, as vozes cortando o ar no autódromo quase vazio.
Partem frente à Tribuna Ayrton Senna, em cuja entrada há uma foto em tamanho gigante do piloto, tirada na manhã de primeiro de maio de 1994, ali mesmo nos boxes de Ímola, pelo fotógrafo local Giampreto Sanna. Ayrton está de pé, trajando o macacão azul e branco da Williams, acenando com a mão direita, sem sorriso, um tchau que se transformaria em adeus.
Vejo do outro lado da pista, pendurados no alambrado, no ponto exato em que se encontra a Tamburello, outros objetos de homenagem. Vou até lá. Tenho que sair do parque, passar de novo sob a pista e depois, margeando o Rio Santerno, devo subir um pequeno trecho íngreme para chegar ao alambrado da parte externa do circuito.
Vou saindo e então as crianças da escola estão também de saída, guiadas pelas professoras que portando bandeirolas vermelhas organizam a alegre bagunça, formando filas paralelas. Falam alto, riem muito. Mesclo-me a elas, meio sem jeito. Tentando manter-se quatro ou cinco passos adiante do grupo que avança, um provável pai orgulhoso busca registrar em vídeo, câmera na mão, o momento especial de um filho seu.
As crianças dirigem-se para a ponte sobre o rio, em frente e à direita da saída do parque. Separo-me delas, vou para a esquerda.
Preciso alavancar-me nos troncos e galhos das árvores para chegar até ao alto, no alambrado da Tamburello. São duas camadas paralelas de alambrados. As pessoas devem saltar a primeira linha do alambrado ou convencer algum guarda a entrar entre as duas para, na segunda, a que está imediatamente ao lado da pista, afixar sua homenagem. Um esforço que só um fã determinado tem motivação para fazer.
E muitos fazem, mais até do que na estátua, cujo acesso, ao contrário deste barranco, é fácil. Deixam suas homenagens. Flores. Uma inusitada colagem aplicada sobre a bandeira vermelha da Ferrari, com a foto de Senna em capacete mesclando-se com a bandeira do Brasil. Uma bandeira russa nas listras horizontais em branco, azul e vermelho. Uma pequena bandeira suíça vermelha com a clássica cruz branca no centro. Uma foto reproduzindo o epitáfio no túmulo do cemitério do Morumbi, em São Paulo.
Christoph Mechthirtel, que se identifica como alemão, deixa uma colagem com uma foto de Ayrton e de seu colega de Fórmula 1 Gerhard Berger, cercada de várias reportagens de jornais brasileiros sobre Senna. Escreve uma dedicatória, em italiano:
A Ayrton Senna da Silva
Que nos presenteou a todos com emoções belíssimas, permanecendo para sempre nos nossos corações. Ciao, Ayrton.
E novas cartas. De brasileiros e estrangeiros. Uma delas, também em italiano, de missivista cujo nome já não se pode mais distinguir:
Tu és meu ponto de referência. Continuarás sempre a ser meu modelo de vida.
EXCERTO 3
Uma porta para a vida
Tem música ao vivo na Praça Ayrton Senna. O palco é modesto, a garotada faz alarido, feliz, e a pequena banda Abraço da Paz começa a dar seu recado. Uma manhã ensolarada, 10 de dezembro de 2005. O show tem motivo duplo. Celebra-se o fim de ano das atividades, mas o nome do show remete a outra celebração sobreposta: 10 Anos Com Muito Talento.
Tudo começa aqui, no Centro de Práticas Esportivas da Universidade de São Paulo, o Cepeusp. Em agosto de 1995, decola a primeira iniciativa do Instituto Ayrton Senna, o Projeto Esporte Talento. Já faz muito tempo e tanta coisa aconteceu, tantos sonhos rolaram, tantos outros projetos brotaram, como flores que se abrem num campo de primavera. Tantas histórias de vidas em progresso que deram um passo a mais ou dois, ou dez, que caminharam distâncias enormes forjando um outro rumo para seus destinos. Há também as histórias dos que retrocederam, algumas de quem não conseguiu se sintonizar com a oportunidade e a perdeu.
Mas hoje é dia de festa. De comemorar os casos humanos de sucesso. Como o da cantora da banda, Karina Pires da Silva Rosa, prestes a completar 20 anos de idade em janeiro de 2006. Agora ela está no centro do palco, de volta a este território de aprendizagem de vida, por onde andou um bom tempo. Traz sua contribuição para essas meninas e esses garotos que espelham o seu próprio passado recente. E se doa cantando. Em inglês. Por isso talvez eles não prestem tanta atenção. Mas ela insiste, confiando no poder da música que canta. Repete o refrão de ritmo hipnótico de um dos maiores clássicos da história do rock, a composição que Bob Dylan faz correr mundo quando lança o álbum Pat Garret & Billy the Kid, em 1973:
Knock, knock, knockin´ on heaven´s door
Knock, knock, knockin´ on heaven´s door
Knock, knock, knockin´ on heaven´s door
Knock, knock, knockin´ on heaven´s door
A letra de Knockin´ On Heaven´s Door é simples, mas direta e universal, como toda música genial. Composta para um filme, refere-se, em princípio, a um xerife que ferido de morte, sente-se batendo à porta do céu e pede à mãe para tirar-lhe o distintivo do peito, depositar-lhe as armas no chão. O tema de fundo, porém, é a inevitabilidade do fim da vida, em certo ponto da nossa trajetória. Ao mesmo tempo, é entendida por muitos como uma alusão à necessidade de se cultivar a humildade e buscar-se o apoio espiritual sem o qual viver pode tornar-se uma aventura por demais difícil.
Bater na porta do céu pode ser também, aventuro, analogia ao pedido de oportunidade para viver. E o céu, desconfio, não é algo apenas transcendente, distante; é também imanente, transposto para situações corriqueiras que incorporam algum valor da sua fonte original maior. Às vezes nos resta pedir um pouco de céu a quem tem; às vezes estamos em posição privilegiada de oferecer algum tipo de céu para quem precisa.
J. R. T. O. tem 14 anos quando comenta sua participação em dois programas do Instituto. Esse e outros casos vão entrar intercaladamente neste texto. Antes, o menino era irrequieto em sala de aula, bagunçava, recusava-se a aceitar um “não”. Depois, toma consciência de uma mudança importante. Um dia, caminhando com um colega analfabeto, sente orgulho de conseguir ler uma placa na rua e traduzir o significado para o outro. Percebe pela primeira vez que na escola se aprende muita coisa boa. Que as plantas respiram, por exemplo, e que não se deve desperdiçar água.
As crianças e os adolescentes deste dia de festa na sede do Projeto Esporte Talento recebem e dão seus céus. Há algumas dezenas delas por aqui. Algumas mães, uns poucos pais e um ou outro parente também estão presentes, alguns já bem à vontade, outros ainda explorando o território com certa timidez, sob o toldo de faixas coloridas, vermelhas, brancas, azuis, lilases.
Cada jovem participante do Projeto recebe de presente um CD contendo fotografias que registram o que quer que tenham feito durante o ano. Esportes que jogaram, artes que criaram, coisas que aprenderam, brincadeiras que não esquecem, amizades que construíram. Dão em troca risos e abraços, comentam, mostram, compartilham.
Muitos dos jovens, os mais velhos, estão terminando seus quatro anos de participação no Projeto. Já não estarão aqui em fevereiro de 2006, quando uma nova leva de cerca de 150 participantes chegará para substituí-los e percorrer seu próprio ciclo de quatro anos. Os professores e bolsistas da equipe de coordenação também abraçam e são abraçados, é uma despedida com afeto. No palco, só podem se apresentar educadores e alunos, nada de músicos profissionais que não tenham a ver com o Projeto.
É ali que segue Karina, na banda da qual participam o pai, a mãe e o irmão mais novos, pronta para o último número. Desta vez, a alegre plateia responde com entusiasmo, canta junto um trecho ou outro, entende e se liga. A música soa mais do que apropriada, especialmente para os que vão se lançar no mundo, já sem esse cordão umbilical que de algum modo os nutriu, amparou e protegeu por um bom tempo. É Preciso Saber Viver, de Roberto e Erasmo Carlos:
Quem espera que a vida
Seja feita de ilusão
Pode até ficar maluco
Ou morrer na solidão
É preciso ter cuidado
Pra mais tarde não sofrer
É preciso saber viver